CURADORIA #06 - Sobre as férias
(o que as férias nos permite, pensar sobre as idealizações torno do analista - e os riscos disso!)
É tarde, eu sei.
Agosto bate na porta da analista-mãe lembrando: o mês se encerra, as férias acabam e se inicia agora um novo semestre (oficialmente)!
E se essa Newsletter demorou mais tempo que o previsto para ser enviada, há por trás disso um bom motivo: a analista-mãe, vez e outra, permite-se férias, deixa para trás alguns compromissos e prioriza outras facetas da vida!
Vive férias bem vividas, recua para o espaço íntimo, coloca as leituras em dia, assiste alguns dos filmes que ficaram para depois, organiza as gavetas e vai até o médico fazer um check up de todo ano.
As férias devolvem o tempo para além do trabalho e diante disso a analista confessa: o trabalho é exaustivo e cansa!
Confessar isso, assim em alto e bom som, pode gerar desconforto, pode parecer heresia, pecado grave, sinal de insuficiência, de despreparo o analista, ainda mais se a confissão for dita nas redes sociais onde, eventualmente, um paciente e outro podem dar de frente com essa verdade incômoda.
Talvez isso gere desconforto semelhante àquele que acompanha as mães que se sentem culpadas ao assumirem que curtem - também - a vida longe dos filhotes, que gostam do silêncio, da falta de compromisso com as crias, que gostam de ter o relógio só para si.
Talvez nós, analistas, fiquemos receosos em assumir que o treinamento, a formação teórica, as horas de análise e supervisão não nos protegem do desgaste intelectual, físico, emocional que envolve o cuidar.
Talvez tenhamos receios em assumir o que isso revela: o que fazemos é antes de tudo trabalho e não vocação ou dom!
E com isso não desqualificamos o ofício nem deixamos de reconhecer suas particularidades, suas especificidades. Com isso podemos, apenas, evitar de cair na armadilha de uma certa idealização, romantização do ato de cuidar colocando-o em categoria diferente das outras formas de trabalho.
É verdade que os anos de experiência podem nos deixar mais cientes dos limites, dos cuidados que precisamos ter conosco, mas não há trabalho - trabalho algum! - que seja praticado apenas com prazer e amor.
No caso do analista, o trabalho inclui manejo da teoria mas também um certo tipo de envolvimento emocional que exige consciência dos afetos que perpassam o setting. Inclui a capacidade de identificação projetiva e a atenção para identificar as necessidades envolvidas no caso.
Por isso, é necessário cuidar do que se refere ao setting, à teoria e aos manejos do caso mas também cuidar do que nos envolve para além das paredes do consultório.
Curiosamente, no entanto, nós analistas temos o péssimo hábito de não falarmos claramente sobre as condições objetivas do nosso trabalho, mantendo-nos portanto alheios à discussões importantes.
A consequência disso é não falarmos (nem pensarmos) abertamente sobre questões que pertencem ao universo de qualquer trabalho: férias, licença maternidade, aposentadoria, condições de trabalho, seguridade…
Idealizamos o cuidado.
Idealizamos o cuidado de mães e as sobrecarregamos.
Idealizamos o trabalho do analista e acumulamos cansaço; desgaste emocional; carga de trabalho sempre exaustiva; falta de organização que nos permita férias, aposentadoria digna…
Por isso, tomemos as férias, para além do descanso. Pensemos como símbolo, como representação de tudo aquilo que é direito de todo trabalhador: o descanso, a pausa, a aposentadoria…
E se vemos as instituições psicanalíticas pouco interessadas em discussões que abordem esses temas (e com isso os pense coletivamente!), cabe a nós, analistas, levarmos o tema para o nosso campo e pensar caminhos de cuidado conosco para além ( muito alem) do setting!
Confissões da analista: a celebração das férias revela, o trabalho (da analista) cansa!
Ao longo do ano, afirmamos, aos quatro cantos, nosso amor à profissão, compartilhamos momentos de estudos, recortes do dia a dia que revelavam nossa realização profissional. Parecíamos felizes, realizados, plenos, por que então as férias chegam assim celebrada aos quatro cantos como sinal de alforria,, de liberdade, de alívio imediato?
Será que não somos tão felizes como gostaríamos de parecer? Não nos sentimos livres o suficiente? Os posts sobre o amor ao ofício era puro marketing e auto promoção?
A agenda cheia é certeza de uma certa autonomia financeira mas está longe de ser garantia de alegria e realização. A verdade é que o trabalho nos rouba horas valiosas do dia e acabamos estafados ao final de cada ano.
Vez ou otura ouço de um supervisando, um colega psi ou um paciente: “Acho que não gosto mais da clínica!”
Ouço isso com profundo pesar mas confesso: já me reconheci também ali, naquela fala!
E verdade seja dita: talvez não seja a clínica o problema, nem os pacientes, nem a tarefa do cuidado em si.
É que confessamos pouco que o amor à profissão não substitui o amor por outras coisas. Confessamos pouco que a vida é rica por demais em possibilidades e não se esgota no universo do trabalho, por mais felizes e realizados que somos. Confessamos pouco que a estrutura de trabalho, conforme a conhecemos, nos engessa, estafa, destrói a possibilidade de realização pessoal e enriquecimento.
Talvez a celebração das férias revele uma verdade inconveniente e pouco confessada: o trabalho pesa!
(e se não formos atentos e cuidadosos ele nos roubará a alegria do ofício, a realização pessoal e nos adoecerá, mais cedo ou mais tarde!)
Uma pitada de Winnicott
Quem cuida assume uma responsabilidade imensa que pesa os músculos e as articulações.
Com o tempo e a prática, o corpo (físico e teórico) vai ficando firme e forte e já não sente tanta dor muscular depois da maratona de cuidados intensos. Ainda assim, a tarefa cansa, exige, esgota.
Por isso, mantemos os limites do setting, cuidamos de encerrar as sessões em tempo razoável (que respeite as necessidades do aso e do analista); por isso prezamos pela moldura; por isso, marcamos férias (e cuidamos de comunica-lá). Hoje compreendo que esses cuidados possibilitam a sobrevivência do analista.
Esses cuidados com as condições do trabalho do analista nos permitem manter a presença necessária para sustentar o trabalho. Com Winnicott compreendi que isso se referia a uma certa dose de ódio que precisa ser contemplada no trabalho do analista. Nas palavras do autor (1984g):
Qualquer trabalho em que estejamos envolvidos como cuidadores pode ser descrito como uma espécie de amor, mas, com freqüência, tem de parecer mais um ato de ódio, e a palavra-chave não é tratamento ou cura, mas sobrevivência. Se vocês sobreviverem, a criança terá oportunidade de crescer e vir a ser algo parecido com a pessoa que deveria ter sido, se um infausto colapso ambiental não tivesse acarretado o desastre.
Para saber mais entre de cabeça no tetxo “Ódio na Contratransferência” que esta no “Pediatria a Psicanálise”e se libere um bocado da culpa pelos sentimentos que tem em relação aos pacientes. Pelo contrário: se aproprie deles e uso para benefício do caso!
Para acessar o PDF, clique aqui!
Dicas de leitura
Para descansar a cabeça, para visitar outros espaços que não o da teoria: uma literatura contemporânea, irônica, sarcástica, criativa!
Juliana Frank é a autora de “Meu coração de pedra pomes” que conta a história de Lawanda, a faxineira sem escrúpulos que ganha um dinheirinho extra com os trabalhos, escusos, que faz para os pacientes internados: batata frita, lasanha, hora íntima com o namorado, show do Cawby?! Nada é impossível para Lawanda!
O interessante é perceber a evolução do raciocínio da personagem, que a cada página esquece de tomar a medicação psiquiátrica. O efeito da falta de medicação é um raciocínio caótico, confuso, enlouquecido mas extremamente rico, interessante e envolvente!
Uma boa pedida para entrarmos em contato com a loucura de um outro ponto de vista: mais lúdico e divertido!
ATÉ A PRÓXIMA!
Espero você na próxima edição!
Tem algum dúvida teórica, questionamento, desafio clínico que te angustia? Escreve para mim e me conta um pouco mais! é só enviar um e-mail para marina.reigado@gmail.con
Quem sabe a sua questão não vira o pontapé inicial para nossa próxima troca?
Adorei! Ainda ouço piadas sobre o nosso trabalho, de que ficamos sentadas e apenas escutando... Os que nos vêem.desta forma não tem.nocao dos bastidores, não é mesm?
Confesso que este semestre que passou fiquei bem cansada, tive o pensamento "não estou gostando mais da clínica", não via a hora de chegar a minha semana de recesso.
Obrigada por nos fazer refletir e nos enxergar na sua escrita. Bjs 😘